Cross Sections
Clothilde
LISTEN:
CLIP1 - CLIP2 - CLIP3 - CLIP4 - CLIP5
Primeiro longa-duração de Clothilde fora do formato cassete ou digital. "Cross Sections" ouve-se como um álbum de passagens, para lá do formato, para lá do som da compositora, para lá do limbo onde se situa. Até aqui, Clothilde (Sofia Mestre) criou música e, com ela, a sugestão de que ela - a artista - era um transmissor de uma mensagem que saía das "suas máquinas". Numa altura em que se falta tanto de inteligência artificial e de arte criada por inteligência artificial, tem alguma piada que durante anos Clothilde tenha estado à frente desse movimento encenando, no mundo real, toda a espectacularidade da aleatoriedade do algoritmo. A punchline é que nada disto era, ou é, aleatório. Então porque falamos assim? Porque é que quando falamos de Clothilde sentimos sempre esta vontade de falar de música que é criada por alguém, sim, mas que esse alguém parece subjugado a uma vontade de máquinas? A nossa crença tem a ver com o som que cria, um som físico, monumental, por vezes opressivo e que se ouve como de outro mundo. Existiu, até este "Cross Sections", algo de irreal na sua música e só há uma forma de o dizer: para ela existir, tínhamos de acreditar nela. Parece pedir muito, mais do que ouvir, acreditar na música, mas eis a deixa para entrarmos a sério em "Cross Sections". "Cross Sections" é uma obra monumental. Em vários sentidos. Monumental porque é um dos nossos álbuns favoritos deste ano (sim, somos nós que editamos, e depois?). Monumental pela forma como a música se entrega a uma causa, como se esventra em constância por uma catarse que nunca acontece. Monumental porque conforme tudo flui, também tudo se esvai, por outras palavras, quanto mais entregamos a "Cross Sections", mais "Cross Sections" nos dá. No fundo, é preciso acreditar no que estamos a ouvir, é preciso desligar da "mentira" de Clothilde e assumir que as máquinas já não estão em controlo. Isto é ela numa cápsula, num determinado momento, a permitir que a monumentalidade de um momento se forme em algo monumental. Monumental porque hoje é raro ouvir electrónica assim. Tão coesa, tão certa de onde quer habitar, mesmo que essa casa seja um limbo e que insista em viver nesse limbo. Há uma certa piada, e talvez esta seja a verdade de "Cross Sections", em que um disco tão austero nas suas certezas, goste tanto de viver na incerteza de as entregar. É como se se alimentasse da sua e da nossa insatisfação. Em "Sapwood", por exemplo, quando sentimos a coisa a elevar-se, termina em fade out. Ia no caminho para a certeza e, de repente, ficamos para sempre na dúvida de um eco. A dúvida é uma constante. Surge logo na faixa de abertura, "Pith", quando começamos a ter a certeza de que estamos a ouvir uma das sinfonias com várias guitarras de Glenn Branca. Até, pronto, não estarmos. Ou quando "Heartwood" questiona ao longo de seis minutos se podemos viver em êxtase na condição de constante alarme. Talvez, mas só durante seis minutos. A sentença acontece nos treze minutos de "Ring", resignamo-nos e adormecemos para sempre neste limbo ou erguemo-nos com os punhos bem lá no alto perante a insistência da incerteza de "Cross Sections"? Monumental, também, porque é música fundamental. É música enquanto arte, sem a preguiça de ser arte. Com o som a nu para nos reabilitarmo-nos com ele. Não ouvirão outro disco assim.