Downhill Vignettes / Quadrúpede Ergue-se Bípede De Gatas
Clothilde / João Hã?
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A manobra de junção destes dois álbuns aconteceu naturalmente. Embora ambos brotem de zonas e intenções substancialmente diferentes, revelou-se uma espécie de terreno sónico comum, um habitat de convívio. Partilham semelhante espontaneidade nos métodos de produção, um ênfase na experimentação como ética e estímulo criativo, um desejo subjacente de transformação. Sem pretender polir, embelezar, mas sim conseguir um discurso artístico que respeite a intuição. Falamos de dois artistas (Clothilde e João Hã?) rodados, diplomados e bem diferenciados no uso de equipamento electrónico, donos de visões individuais e fonte de afirmações estéticas com lugar no mundo contemporâneo.
"Downhill Vignettes" manifestou-se quase por acaso, durante o longo e íntimo processo de pesquisa, mentalização e foco de Clothilde com vista à composição do seu próximo álbum (que editaremos ainda este ano): "Comecei por escutar os álbuns anteriores e depois senti necessidade de ouvir jams, gravações, ensaios e até gigs que foram gravados para perceber o que tinha acontecido." Ao escutar este seu lado na cassete, estamos de facto a assistir a fases de uma jornada de aprimoramento na forma de testes e ensaios destinados a carregar a artista a uma obra final. Ela fez uma rigorosa revisão do seu património editado e, sobretudo, inédito, seleccionando momentos-chave das muitas horas de gravações caseiras.
Reunidas estas peças, ilumina-se a sensação de que também aqui está um trabalho acabado. A beleza austera das nove faixas acusa seriedade e envolvimento e evoca um ambiente outro-mundista com tanto de sintético como orgânico. Pequenas narrativas, quase todas com final em aberto, o que é indiferente se nos empenharmos na imersão, se desejarmos coabitar nessas histórias com a população que já lá reside. O final em aberto passa então a ter continuação na nossa mente. Um Planeta Proibido mas com acesso concedido.
João Hã? vem ao mundo desligado do seu projecto-raiz que é Calhau! (com Marta Ângela). Aos procedimentos que desembocam em "Quadrúpede Ergue-se Bípede De Gatas" não se consegue atribuir uma janela cronológica, dispersos que estão por vários anos e mesmo até à fase de mistura final. Esse desligamento em relação a prazos faz eco de uma outra expressão de liberdade: a variedade de meios e suportes de gravação. O artista enumera "gravadores digitais, dictaphone, telemóvel, smartphone, gravador de cassetes e tb microcassete", assume (quase diríamos planeia) a diversidade para depois lidar criativamente com as diferentes captações.
As construções resultantes são mantidas na forma mais bruta possível numa junção de partes com a ideia de "passar a sensação da experiência daquilo que, por alguma razão, tem dificuldade em se fixar, uma espécie de forma que mal se edifica, uma coisa que não se aguenta bem no estado em que se encontra. (...) Uma música mole que não tem maneira de endurecer." Essa moleza chega até por palavras em "Olá Pesadelo", onde é lido o texto integral do livro "plotfold", que João publicou em 2021 sob o nome Jon Von Càlat.
Podemos ir atrás, ao tempo do pioneirismo na música electrónica, à música concreta que referencia explicitamente os objectos utilizados para criar o som, só que a música em "QEBDG" existe agora, fixada em forma líquida (parece um contrasenso), pronta a fluir e disponível para embalar quem escuta, como uma cabine de teleférico sempre em andamento e na qual os passageiros entram e saem numa permanente rotação.
The coming together of these two albums happened naturally. Although both stem from substantially different areas and intentions, a kind of common sonic territory revealed itself, a common habitat. They share a similar spontaneity regarding production methods, experimentation as ethics and creative stimulus, an underlying desire for transformation. Not wanting to polish or embellish, rather to achieve an artistic discourse respectful of intuition. We speak of two artists (Clothilde and João Hã?) whose approach to electronic equipment is well seasoned and differentiated, they are owners of individual visions and sources of aesthetical statements with a rightful place in the contemporary world.
"Downhill Vignettes" manifested itself quite casually during Clothilde's long and intimate research, mentalization and focus leading to the composition of her next album (to be released later in 2024): "I started by listening to previous albums and then I felt the need to listen to jams, recordings, rehearsals and even gigs in order to understand what had happened." When listening to her side on this tape, we are in fact witnessing phases of a betterment journey in the form of tests and ideas destined to carry the artist into a finished work of art. She rigorously reviewed the bulk of her recorded and mainly unreleased material and chose key moments out of many hours.
Having collected these pieces, there came the illumination that here, also, is a finished work of art. The austere beauty found in the 9 tracks reveals seriousness and commitment, it evokes an otherworldly atmosphere as much synthetic as organic. Concise narratives with (frequent) open endings, which are indifferent if we immerse ourselves in the sound, if we wish to co-inhabit these stories with their already established population. Open endings are then followed up within our minds. A Forbidden Planet with granted access.
João Hã? comes disconnected from his main project Calhau! (with Marta Ângela). It is impossible to attribute a rigid timeline to the proceedings that led up to "Quadrúpede Ergue-se Bípede De Gatas", as they are scattered throughout several years up until the final mixing stage. That bypassing of schedules and time frames echoes one other expression of freedom: the variety of recording methods. The artist enumerates "digital recorders, dictaphone, cellphone, smartphone, tape recorder (also microcassettes)". He assumes (we could almost say plans) the diversity so he can later deal creatively with the different results.
Those are kept as raw as possible, parts are combined "to convey the sensation of something that for some reason experiences a difficulty in becoming solid, a barely recognizable shape, something that can't really hold its current state properly. (...) A soft music that is unable to harden." This softness also reaches us via the words in "Olá Pesadelo", where the artist reads the full "plotfold" book he published in 2021 under the name Jon Von Calàt.
We can go back as far as the pioneering years of electronic music or musique concrète explicitly referencing objects used to obtain sound, but the music in "QEBDG" exists in the present, fixed in liquid form (this sounds nonsense), ready to flow and available to lull whoever is listening, like a cable car loop with passengers stepping in and out in permanent rotation.